quinta-feira, novembro 6

5 de novembro

Pela última vez, vestes a farda que tanto detestas. Camisa, saia travada, collants, os sapatos toc-toc, sem esquecer o lenço, bem posto à volta do pescoço. Lápis preto, rímel, mas sem exagerar, um pouco de sombra. Uma trança, dois ganchos a prender os cabelos teimosos e estás pronta.
Pegas na mala, respiras fundo e sais. Fechas a porta atrás de ti.
Chegas ainda vinte minutos antes da hora, o costume. Assinas a folha, avisas que já lá estás, vês o que te reserva a divisão do trabalho do dia e começas. Começas a contagem decrescente.
A última vez que chegas à porta de um avião e perguntas à chefe de cabine "any specials?", a última vez que pegas no rádio para chamar transportes ao stand alpha vinte e dois, a última vez que confirmas se haverá casos especiais, crianças não acompanhadas, passageiros com cadeira-de-rodas, meet and assist. A última vez que passas o SEF pelo corredor STAFF.
Hoje nem sequer há muito movimento, podes olhar tudo com calma e ponderação, fingir que amanhã regressas de madrugada e-que-chatice-vai-ser, cumprimentar os passageiros "have a nice flight sir", voltar ao escritório.
Preenches os últimos formulários de voo, arquivas os processos terminados, assinas a folha de saída. "Adeus, foi um prazer. Até à próxima." E sais de rompante, com o coração mais apertado do que esperavas e os olhos em chama apertando as lágrimas para que ninguém perceba. Para que ninguém perceba como até gostaste tanto. As noites até às três da manhã, as manhãs das quatro e meia, as dores nos pés, a chuva na placa, os passageiros sempre mal dispostos, a azáfama, os domingos, os feriados.
Regressas a casa, despes a farda e deixas-te cair sobre a cama. Já foi, já acabou.
Seis meses passaram a correr.

5 comentários:

Custódia C. disse...

Os meus abraços todos, bem apertados, para ti também!
Novos desafios virão...

polegar disse...

não fazia ideia...
se te custa, custa-me a mim.
que lá regresses, tantas e tantas vezes, de olhos brilhantes e bilhete na mão, pronta a voar daqui para fora...

J.R. Lima disse...

ah... o tempo traz e leva, e tudo às pressas.

Voar é bom quando se escolhe.

Lindo texto, parabéns.

miak disse...

Um beijinho tão grande.

magarça disse...

Como te percebo, num só ano já mudei duas vezes de trabalho. Mas já diz o provérbio, "A quem muda Deus ajuda". Certamente voos mais altos te estão destinados. Muitos beijinhos.